São José e Santa Maria, salve-se quem puder
Tudo o que leio e ouço é sobre questões técnicas; são os
médicos de determinadas especialidades que se recusam trabalhar ao fim de
semana pelo dinheiro que o estado lhes dá, são os enfermeiros que apanharam a
boleia das queixas dos médicos pelo salário que também recebem, até ao extremo
de se dizer que houve negligência e de ninguém ter dado importância ao caso,
afinal era só mais uma vida por um fio, nada de mais, um dia normal, portanto.
Depois, a parte gira pintada de negro, é ver médicos e
enfermeiros numa guerra de crianças para ver quem ganha a culpa: “a culpa foi vossa porque avaliaram mal o
caso e não procederam como deve ser”, “naa
naa, a culpa foi vossa porque se recusam a trabalhar ao fim de semana por menos
dinheiro”, “ah mas vocês também
reclamam do mesmo!”, “mas isso não
vem para o caso em questão!”. É atirarem a batata a escaldar a ver quem sai
mais queimado, nada de novo também, portanto.
Mas, na minha opinião, acerca deste caso (e de tantos outros
que nunca se falaram), falta falar de um aspeto, se não o mais, muito
importante; o respeito pela vida humana. Mais do que salários mal pagos, mais
do que cortes por parte do Estado, mais do que falta de profissionais de saúde,
existe ainda muita falta de respeito para com a humanidade.
No meu parecer, a medicina tornou-se uma profissão onde o que
mais importa são os tostões que caem na conta bancária porque, coitadinhos,
trabalham demais, sentem-se cansados, com responsabilidades acrescidas e são
muito mal pagos pelo Estado. O que há-de dizer uma empregada doméstica que mal
tem férias, recebe um salário miserável, mal vê os filhos só para garantir que
lhes dá o que comer. Ah mas ela não estudou tanto como os médicos e
enfermeiros, é verdade, mas também se cansa e se farta das "merdices" do Estado,
com a mesma legitimidade que um licenciado.
É verdade que, hoje em dia, o Governo entra-nos pela vida
adentro e rouba-nos até a dignidade. Mas também é verdade que por trás da
profissão de médico há um juramento, e esse, deveria ser para vida e não só
para o dia da fotografia que marca o término do curso.
Portanto, mais do que "lamechices" de salários mal pagos e
horas extraordinárias, existe a obrigação de salvar vidas, porque se não for
para isso, aposentem-se senhores.
Aos médicos e enfermeiros do São José, do Santa Maria e
desses hospitais afora onde também existe incompetência, eu tenho umas
palavrinhas para vos dizer. Este natal, vocês puderam sentar-se à mesa com os
vossos, puderam abraça-los, presenteá-los, e mesmo que alguns tenham estado de
serviço, terão sempre a sorte de voltar para casa e ter quem vos ama à vossa
espera. O que vocês não sabem é que, neste natal, há uma cadeira vazia à mesa, há
um presente que sobrou na árvore, há uma voz que nunca mais se vai ouvir, há
uma ausência que nunca poderá ser substituída, tudo porque só vos pagam 3 ou 4€
à hora.
Neste natal, há uma mãe que, em vez de se sentar no sofá à
lareira e agradecer por ter o seu filho são e salvo, vai-se sentar no sofá com
a cabeça entre as mãos a imaginar que está a viver um pesadelo, uma mãe que
dificilmente voltará a sorrir tão cedo, uma mãe que morrerá um bocadinho, todos
os dias, durante o próximo ano que se avizinha.
Enquanto na passagem de ano vocês comerão as 12 passas e
pedir um desejo para cada uma, esta mãe vai pedir o mesmo desejo em cada 12
passas. Eu sei que vocês não vão pensar nisto, afinal foi só mais uma vida que
se foi, mais virão. Mas espero que um dia o tiro não vos saia
pela culatra, afinal, a vida é um sopro e nem médicos nem enfermeiros escapam
disso.
Espero também que um dia, um qualquer colega vosso, não se
lembre de fazer a mesma birra quando um qualquer filho vosso estiver com a vida
por um fio, e vocês sem poderem fazer nada porque, afinal, não é a vossa
especialidade.
"Karma is a bitch", nunca se esqueçam disso, um dia pode-vos
dar jeito, quanto mais não seja para pedirem “desculpa”. Porque errar é humano,
ser estúpido é outra coisa.