domingo, 8 de setembro de 2019

A Ciência e os argumentos de autoridade

Quando era adolescente adorava ouvir e ler Carl Sagan. As palavras dele sobre Ciência e epistemologia eram-me verdadeiramente inspiradoras.

Uma série de outros autores de divulgação científica alinhavam pelo mesmo diapasão e eu gostava: a Ciência recusa "autoridades", o que importa são as "evidências"*, "devemos avaliar os argumentos pelos seus méritos, avaliar as evidências que os suportam, e ignorar a quantidade de gente que a eles adere ou a autoridade dos mesmos" e por aí fora. Para mim, que além de gostar de Ciência também tenho pouco entusiasmo por hierarquias isto era música para os meus ouvidos.

Mas não foi só em mim que esta ideia ressoou. Esta ideia entranhou-se na cultura popular de forma rápida e impressionante. A ironia é que os mais destacados defensores desta ideia são todos extraordinários lutadores contra a pseudo-ciência e a desinformação, mas esta ideia fez muitíssimo pela promoção da pseudo-ciência e desinformação. Os próprios nunca aceitariam esta afirmação: se consideramos as evidências com suficiente atenção e reflexão, obviamente vamos acabar por rejeitar a pseudo-ciência. E nisso têm razão.

Na verdade esta epistemologia seria a melhor epistemologia possível num Universo em que cada indivíduo tivesse uma capacidade cognitiva tremenda e uma quantidade quase ilimitada de tempo disponível para analisar todas as evidências. Se nos pudéssemos tornar especialistas de tudo, poderíamos avaliar todos os argumentos e afirmações científicas pelos seus méritos. Saberíamos o suficiente sobre Nutrição, Medicina, Física, Economia, História, Direito, Ciência Política, Química, Biologia, Matemática, Ciência da Computação, Antropologia, Psicologia, Sociologia, Engenharias várias e todas as demais ciências teóricas e aplicadas, para podermos compreender a literatura científica especializada e compreendermos se aquilo que é apresentado como "evidência" é realmente adequado ou nem por isso.

E ainda é a melhor epistemologia possível caso nos tenhamos especializado (formal ou informalmente) num campo do saber. Quem faz investigação numa área tem de ser capaz de avaliar as afirmações que são feitas nesse campo sem recurso a argumentos de autoridade ou de popularidade. Se faz investigação, se é um especialista, tem de saber procurar e avaliar as evidências, e são essas apenas que importam.

Mas geralmente nós somos confrontados com afirmações científicas em campos nos quais não nos especializámos. E muitas vezes não podemos simplesmente dizer "não sei", porque somos forçados a tomar uma decisão que tem implícita a aceitação ou recusa de uma determinada afirmação científica. Por exemplo, se leio num jornal que "a couve lombarda causa cegueira" (é um exemplo ilustrativo deliberadamente disparatado) eu posso decidir continuar a comer couve lombarda (tomando a afirmação como falsa) ou parar de comer couve lombarda (tomando a afirmação como verdadeira), mas a minha falta de capacidade para ir procurar e avaliar as evidências não me permite evitar esta decisão.
Um exemplo muito importante é a questão do voto. Os partidos políticos justificam as suas propostas com afirmações de índole económica, afirmações de índole histórica, de índole legal, índole ética e filosófica mas também de índole psicológica, climatérica, agronómica, etc...
Não é possível sermos especialistas em todos os campos do saber necessários para poder avaliar a veracidade das afirmações que os políticos fazem.

Como lidar com este problema?

O facto de não podermos ser especialistas em tudo tem uma consequência: vamos cometer erros. Vamos ter uma percepção da realidade que é inferior à que teríamos se avaliássemos todas as evidências disponíveis, reflectindo adequadamente sobre o significado e implicações das mesmas.
Mas como minimizar estes erros?
Usando heurísticas.

E é aqui que entra a legitimidade do argumento de autoridade.
Se não sou especialista numa área, eu uso uma heurística: confio no consenso entre especialistas. Quando a generalidade dos especialistas estão de acordo num ponto, eu presumo que as evidências lhes dão razão, pois não tenho o tempo nem a capacidade de as avaliar. Confio que a discussão científica e a investigação até ao momento terá conduzido a maioria dos especialistas a tirarem a conclusão que melhor se alinha com as evidências disponíveis.
Se um criacionista ou um negacionista do holocausto me desafia com "evidências" eu sugiro que as apresentem num processo de revisão por pares ("peer-review") e que quando convencerem os especialistas eu também serei convencido. Quando me dizem que a comunidade científica está a conspirar para omitir certas verdades, eu já ouvi o que tinha a ouvir.
Dizem-me que os especialistas também estavam errados em duvidar do Galileu (é sempre este o exemplo apresentado), e eu admito que terão razão: esta heurística também pode falhar de vez em quando. Mas quando penso na quantidade de ideias falsas e disparatadas que os especialistas rejeitaram e me recordo que os tais especialistas eventualmente acabaram por aceitar as ideias de Galileu, sei que sem me tornar especialista na área não há nenhum processo tão certeiro como este.
E se a generalidade dos cientistas acredita numa determinada afirmação relativa ao seu campo de especialização, apresentar essa facto em suporte dessa afirmação - o argumento de autoridade - não se trata de uma falácia mas sim de um argumento adequado.

Note-se que poderão existir algumas excepções a esta heurística. Quando os especialistas da matéria em causa, no seu todo, têm fortes interesses pessoais na afirmação em causa, será mais legítimo duvidar da afirmação ou exigir outros fundamentos. Dito isto, não podemos encontrar relações suficientemente indirectas ou absurdas (os climatólogos têm interesse em empolar os perigos do aquecimento global para receberem mais dinheiro para investigação) ao ponto de alinhar com o pós-modernismo mais extremista.

Esta forma de funcionar permite "navegar" melhor pelos mares desconhecidos que somos forçados a navegar por necessidades pessoais e políticas.
A Ciência (principalmente as ciências naturais, graças a inúmeros avanços tecnológicos impressionantes e não só) granjeou um tal apreço e credibilidade que muitas pessoas acabam por usar esta heurística de forma intuitiva.
Quem não o faz, geralmente acredita simplesmente no que quer. Se os cientistas estão de acordo com o seu ponto de vista apresenta essa concordância como justificação adequada; se os cientistas discordam, então ai o Galileu e a Ciência não se faz por consenso.

É aqui que chego à razão pela qual, ironicamente, a popularidade da ideia de que devemos recusar os argumentos de autoridade acabou por ajudar tanto a promover a pseudo-ciência. É que quando as pessoas avaliam as evidências para apurar algo, só sendo especialistas na área é que estão efectivamente a avaliar todas as evidências sabendo contextualizá-las na investigação que foi feita. Quando não são, podem ver um "documentário" no canal "Discovery" sobre como existem Sereias, documentário esse que apresenta "evidências" (o mesmo pode ser dito sobre os "documentários" a dizer que o 11 de Setembro foi da responsabilidade do governos dos EUA, ou que os Aliens têm raptado gente no Alabama, ou que o aquecimento global é uma treta, e por aí fora...) e, na ausência de tempo e capacidade de se inteirarem de todas as evidências disponíveis sobre o assunto, acreditam que as "evidências" os levaram a concluir isto.
Note-se que  a generalidade das pessoas com quem os proponentes destas afirmações contactam conhece ainda menos "evidências" (não viu os "documentários") mas recusa acreditar nestes disparates com base em argumentos de autoridade (por exemplo, eu eu não vou perder o meu tempo à procura das evidências que demonstram que as "evidências" de que há sereias são deficientes, porque não tenho vida para isso). Assim, os proponentes destas afirmações, com base na ideia de que são os próprios cientistas que nos dizem para rejeitar argumentos de autoridade, ganham acrescida convicção e investem-se mais ainda nestas crenças e na sua promoção. Eles têm estas convicções com base em "evidências", as pessoas à sua volta rejeitam-nas sem razões adequadas.

A ironia é que, com base nesta ideia de utilizar heurísticas, eu tendo a ter muita confiança nas afirmações de muitas das pessoas que ainda hoje promovem a recusa em aceitar argumentos de autoridade. Um exemplo ilustrativo é o youtuber potholer54 que faz um excelente trabalho de divulgação científica. Ele apela constantemente a que confirmemos por nós próprios tudo o que ele diz, facilitando o trabalho com links para todos os artigos científicos a que se refere ou outras referências que faça. Tal como Sagan, Tyson e outros divulgadores, a epistemologia apresentada é a da recusa total de argumentos de autoridade.

Mas por muito que aprecie todo o seu conteúdo, a forma como expõem e como descrevem a literatura científica, acredito que está na hora de começarmos a pensar numa epistemologia diferente, adequada a uma população que tem de formar crenças sobre a verdade ou falsidade de afirmações relativamente às quais não tem tempo nem disponibilidade para avaliar as evidências. Temos de saber quando e como usar argumentos de autoridade, compreendendo que há contextos nos quais são válidos e adequados.

Post também publicado no Esquerda Republicana.

* - a tradução mais natural de "evidences" seria "provas", mas "provas" em português está associado a indícios tão fortes que se tornam quase definitivos, enquanto que o termo anglicizado "evidências" é mais fácil de associar a todos os indícios resultantes da observação que sejam relevantes para o que se pretende apurar.
Este uso do termo tornou-se tão comum que já consta do dicionário, logo a seguir ao seu significado original. 

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Petição contra “tribunais privados” com mais de 4000 assinaturas portuguesas

Mais de 4000 assinaturas portuguesas na petição contra o ISDS

A petição europeia “Direitos para as pessoas, regras para as multinacionais”  - em cuja divulgação me tenho empenhado pessoalmente - já contém mais de 4000 assinaturas portuguesas.

A iniciativa europeia, que foi lançada em Janeiro, conta com quase 600 mil assinaturas em toda a Europa. Ontem ultrapassou as 4000 assinaturas de cidadãos portugueses.

Se é verdade que, em proporção do número total de assinaturas, o número de assinaturas portuguesas não pareça extraordinário, também é verdade que a população portuguesa é, na Europa, aquela que maior desinteresse apresenta por questões de política e cidadania, o que muito prejudica o país.

Por exemplo, muito poucos portugueses têm conhecimento de como o ISDS afecta as suas vidas, nomeadamente por via da relação entre este mecanismo e as chamadas “rendas excessivas” de que a EDP usufrui.

O valor das 4000 assinaturas é simbólico na medida em que é este o número que uma petição nacional tem de atingir para ser discutida em plenário na Assembleia da República. É um valor que muitas petições não conseguem atingir. É um valor que demonstra que existe suficientemente interesse por parte da população para que estas questões mereçam espaço no debate público.

Existe um sistema paralelo de justiça, chamado ISDS, que não é mais que um sistema de justiça privada que representa uma perigosa ameaça para o ambiente, a democracia e os Direitos Humanos. Apesar desta ameaça sobre o planeta e as pessoas, infelizmente poucos estão a par. É necessário promover a discussão pública deste assunto tão importante. Em grande medida é esse o objectivo desta petição: conseguir que se discuta uma questão tão importante para todos.

A rede europeia pretende continuar a recolher assinaturas, tendo também previstas outras iniciativas para alertar a população relativamente aos “perigos do ISDS”.

A TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo, de que faço parte, vai continuar a fazer todos os esforços para que as pessoas saibam o que é o ISDS e estejam a par de outras questões associadas ao comércio internacional que podem afectar as nossas vidas de forma mais indirecta, mas não por isso menos intensa.


Post também publicado no Esquerda Republicana.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Quero ter os inimigos perto









 A extemização da política está a crescer. Sem dúvida que hoje uma frase pode ter leituras diferentes que podem muito levar a ataques pessoais e profissionais. Na melhor das hipóteses o contexto pode levar apenas a tentativa de lápis azul e silêncio da opinião de terceiros. A muito custo o debate deixou de fazer sentido, agora tudo se resolve com um bom pare de ofensas.

Recentemente passei por isso. Por ter comentado de forma negativa uma a opinião de Daniel Oliveira, e por entender que DO tem uma posição sobre os animais que não é a minha, mas principalmente por DO ser ofensivo sempre que aborda quem gosta de animais, não sai daquela caixa de comentários sem uma boa ofensa. Tudo se resume ao meu sentido "fascista" e ao argumento dos dois gatos que o DO tem. O melhor foi a falta de argumentos ter levado a um bloqueio.

O texto de Bonifácio é mau, expressa o preconceito e a superior moral e intelectual de alguém que acha que o tom de pele e a comunidade a qual pertence são características para se inferiorizar outros, é a opinião dela. O facto de a opinião dela ter sido logo acusada de crime demonstra que a tolerância esgotasse nos ideais de cada um. Discordo completamente que a opinião da senhora seja um motivo para queixa, muito menos que se tente silenciar as pessoas que têm a mesma ideia. Ao contrário de muitos que partilham o mesmo espaço ideológico, eu prefiro que as pessoas como Bonifácio tenham espaço para dar a sua opinião. Da mesma maneira que quero que gente como eu use o mesmo espaço para contrapor e retirar a razão a quem pensa como Bonifácio. Não quero censurar os e as "Bonifácios" que por aí andam, sejam eles escritores no Observador, território de muitos, sejam eles os meros artistas que de vez em quando se vão ouvindo ou lendo pontualmente.

 O facto de partilharem ideias bastante antagónicas às minhas, e serem argumentadas com uma espécie de superioridade moral e intelectual, é me totalmente favorável porque posso rebater de forma a desmembrar um por um os argumentos que eles defendem. E se, ao contrário da maioria, lidar sem ironias, ofensas ou parvoíces, torna muito mais difícil que eles mantenham a defesa da sua linha de pensamento. Porque a melhor maneira de lhes quebrar a linha de pensamento não é lhes retirando o direito á palavra, mas lhes retirando a razão.

O conjunto de textos que se seguiram a desmembrar o pensamento da senhora Bonifácio. Textos coesos e com simplicidade suficiente para irritar João Miguel Tavares e o mesmo acabar por colocar os pés pelas mãos em textos desconexos. Esse conjunto de textos da esquerda á direita tornaram visível que o pensamento de Bonifácio não é recomendado no espaço político, e está longe da sensatez da nossa democracia. E eu prefiro assim, prefiro conhecer a Bonifácio, o Tavares e tantos outros, de forma a conhecer o "inimigo" nos olhos, do que lutar contra servidores escondidos algures em qualquer parte do mundo onde são despejadas notícias falsas. Quero poder "partir a espinha" a quem tem "espinhas" na opinião. É essa a essência da democracia.

Não sendo o presidente da minha eleição, não posso estar mais de acordo quando Marcelo afirmou que o extremo deve ser combatido de outra formas, não com extremizar de posições. E até mesmo a sua opinião foi atacada com ofensa pessoais ao Presidente. Mas é essa a posição de muitos daqueles que entendem que o espaço da democracia é a tolerância e o debate democrático.

 Se os mais moderados não aparecerem, estamos sujeitos a tornar a política tão agressiva que acabamos por ter uma opinião de Pacheco Pereira a ser considerada de fascista e preconceituosa. A sensatez na política é cada vez mais necessária.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Não, não tem razão dona Bonifácio








Sobre o texto da Dra. Bonifácio nada vou dizer para acrescentar o que já foi dito da esquerda á direita. Não creio que estejamos a falar de um crime, mas sim de uma opinião que me parece ser tão descompensada quanto um verdadeiro albergue de desconhecimento da realidade. Não foi uma infelicidade da autora, é a sua opinião face ao seu pensamento social, apenas a transmitiu de forma clara.

Neste meu texto vou contrapor um dos parágrafos, juntando a minha experiência profissional á minha opinião sobre as tais "comunidades exóticas". Mas ao contrário de Bonifácio, eu faço com a coerência que se pede a qualquer ser humano que não se alegra apenas com os avanços científicos, mas principalmente regozijo pelo progresso político e social, coisa que a dona Bonifácio parece não ter atingido, ficando a viver nos dourados anos setenta.

A dada altura no texto, a dona Bonifácio salientou que a integração da comunidade cigana era impossível, para tal deu um exemplo infeliz e sem conexão nenhuma com a realidade. O exemplo foi o "comportamento dos ciganos no supermercado". Pois bem, decidi agarrar neste exemplo para demonstrar a senhora Bonifácio que está tremendamente enganada, e longe de uma realidade que é a nossa, do comum cidadão.

Eu trabalho no sector da distribuição Comércio e Retalho á 17 anos. Passei por os dois maiores grupos de distribuição, e em lojas onde as tais comunidades exóticas eram presenças habituais. Mas ao contrário do que a dona Bonifácio lê na sua ideia a realidade é muito diferente.

Durante estes 17 anos de lojas, já atendi milhentas vezes as comunidades que a dona Bonifácio chama de exóticas. Não fui sempre bem interpretado, ou tratado com educação, mas também não fui espancado por ciganos nem ameaçado com uma arma. Já existiu climas de tensão variados com muita falta de respeito á mistura. Mas por mais engraçado que pareça, raramente aconteceu com um "exótico".

Os hipermercados são terrenos férteis de comportamentos pouco civilizados. Além da falta de respeito, ameaças e agressões são prato forte de quem trabalha diariamente nos hiper. Mas a maioria são sempre aqueles cristãos e civilizados caucasianos, líderes dos direitos humanos, uma raça superior, tão superior que exige no atendimento que os mesmos caucasianos inferiores (trabalhadores dos hipermercados) façam a venia  no atendimento

Alguém que pega num produto e coloca em outro local por puro desporto consumista, aborda sem o mínimo de educação, solicita ajuda sem uma salvação ao funcionário, ameaçam e chegam mesmo a tentativas de agressão aos funcionários salvaguardados com a imunidade de cliente, provocam os funcionários desarrumando o que já está arrumado e muitos outros comportamentos que se poderia somar aqui de pura falta de civismo e de educação promovido por maioria dos clientes das grandes superfícies. Maioria em que são muito poucos os casos em que o cliente é "exótico".

Sempre fui abordado com respeito por parte das famílias de etnia cigana. Sejam mulheres ou homens. Com "bom dia" ou "boa tarde" e um "obrigado" no fim. Nunca fui abordado de forma que pudesse dar razão ao comportamento que Bonifácio entende que os "exóticos" tenham nos supermercados. Mas concordo com ela a novecentos por cento quando ela passa uma mensagem de incivilidade e falta de educação que existem nos hipermercados e supermercados, mas tenho de dizer que os protagonistas são os mesmos que pensam da mesma forma que a dona Bonifácio. A mensagem é verdadeira mas o mensageiro é outro completamente diferente.

Não posso partilhar as mesmas visões da Dra Bonifácio, falta-me a empregada caboverdiana para me informar como a sua comunidade exótica vive, mas posso sempre lhe dizer que o exotismo nos supermercados pelo menos é mais respeitador que o caucasianismo perfeito e superior.


Fazer o oposto de Trump

Enquanto activista da TROCA - Plataforma por um Comércio Internacional Justo escrevi um texto que foi publicado no Público.

O texto chama-se Fazer o oposto de Trump e diz respeito ao tipo de clivagem comum no debate público entre aceitar a globalização tal como ela existe (com as suas insustentabilidades a nível ambiental, económico e político) ou defender uma alternativa com pressupostos nacionalistas, xenófobos e anti-ecológicos (a "política de Trump").
O texto propõe uma terceira alternativa: recusar o status quo actual, mas caminhar na direcção oposta à de Trump e construir uma globalização com pressupostos universalistas, solidários e ecológicos.

Assim, a tese principal do texto é a seguinte:

«No entanto, quiçá mais grave ainda do que a contribuição dada para o aumento avassalador das desigualdades e para a estagnação dos salários, tem sido o impacto ambiental insustentável resultante da forma como estruturamos o comércio internacional. O actual nível de emissões de CO2 ou equivalentes (se não for travado) irá dar origem a danos materiais e humanos que em muito superam os sofridos pela Humanidade durante a segunda guerra mundial. No entanto, as alterações climáticas estão longe de ser o único desafio ambiental de proporções planetárias seriamente agravado por esta forma de globalização que vem sendo realizada. É cada vez mais urgente uma globalização muito diferente.

Nos EUA, a frustração com os impactos da globalização foi um dos factores que contribuiu decisivamente para a vitória de Donald Trump. Porém, a política comercial de Trump tem sido verdadeiramente catastrófica. A subida das taxas aduaneiras tem sido errática, precipitada, inconsequente. Pior: subjacente a estas subidas está uma postura de rejeição do multilateralismo; uma crença na ideia de que o comércio é um jogo de soma nula em que uns países ganham à custa dos outros, sem que ambos possam perder ou ambos possam ganhar; e um profundo desprezo pela necessidade de diminuir o impacto ambiental da actividade económica.

Se Trump fez bem em rejeitar o status quo insustentável desta globalização, ele optou por caminhar na direcção precisamente oposta à da defesa do interesse público. Urge fazer exactamente o contrário.

Quando pensamos no comércio internacional entre dois países é fundamental rejeitar a noção de soma nula. Um mau acordo pode prejudicar as populações de ambos os países para benefício de um punhado de multinacionais, mas um bom acordo poderia trazer benefícios a ambas as partes. Por esta razão, importa rejeitar pressupostos nacionalistas ou xenófobos e partir de uma perspectiva universalista e solidária. É fundamental combater o progressivo esvaziamento da Democracia e empoderar a população e a sociedade civil no delinear da política comercial.»

O texto procura, no espaço disponível restante, concretizar em que é que consistiria uma política de comércio internacional universalista e justa, enumerando propostas relativamente à política aduaneira, à harmonização regulatória e aos mecanismos de resolução de litígios. Em relação a este último assunto escrevo:

«Por fim, em todos os acordos devem ser rejeitados os mecanismos de resolução de litígios (ISDS e semelhantes) que estabelecem um sistema de justiça paralelo ao serviço das empresas multinacionais contra os Estados, com graves problemas de falta de transparência, inaceitáveis conflitos de interesses e gravíssimos prejuízos para a legislação ambiental, laboral, de defesa dos direitos humanos, entre outras.

Os Estados deveriam antes empenhar-se na concretização das propostas do Conselho de Direitos Humanos da ONU relativamente ao estabelecimento de um Acordo Vinculativo sobre empresas transnacionais e cumprimento dos direitos humanos.»

Concluo com o apelo à construção de um mundo mundo mais solidário, mais consciente relativamente aos impactos ambientais e muito mais democrático. O leitor pode contribuir para esse objectivo assinando a petição europeia contra o ISDS.


Texto também publicado no Esquerda Republicana.

terça-feira, 9 de julho de 2019

A bolha do PS, da gerigonça e do Governo




A campanha eleitoral está á porta. A geringonça preparasse para terminar a primeira coligação de esquerda em tempos de democracia. Os partidos que fizeram parte desta solução governativa vão começar a chamar a si os louros do mérito nas medidas populares e a trocar culpas do muito que ficou por fazer. Certo é que são poucos argumentos que demonstram que os partidos vivem nesta realidade, e muitos os que demonstram que vivem numa espécie de país á parte .

  Os portugueses, excepção de alguns, continuam a viver da mesma maneira e com as mesmas dificuldades que viviam há quatro anos. Na verdade, para o português comum pouco ou nada mudou. O código de trabalho continua a privilegiar o empregador. Para uma pasta onde é exigido uma firmeza na mesa das negociações, António Costa escolheu a cara da incompetência no que toca á melhoria das relações laborais. Vieira da Silva é uma fraca figura de ministro, incapaz de substituir, a sério, duas centrais sindicais antagónicas no seu modelo de pensamento e aos desejos de confederações patronais. Se há CGTP muito se pode acusar por a sua postura de abandono das negociações ou intransigência, a UGT, que é totalmente desconhecida a sua ligação forte ao sector privado, tem funcionado como confederação patronal. Os acordos na concertação social são, por norma, penalizadores para os trabalhadores, e a UGT tem um cunho nessas penalizações. Por tudo isso, e principalmente por ser o PS governo, estamos no mesmo patamar quanto à degradação das relações laborais, sem que se vislumbre uma mudança capaz de devolver aos trabalhadores do sector privado melhor qualidade no trabalho.

  O país da maravilhas que o PS faz questão de falar na página oficial, usando um crescimento de rendimentos dos trabalhadores por conta de outrem, demonstra a facilidade com que um partido político inebriado nos resultados se consegue tornar vítima dele mesmo. Só por eleitoralismo vaidoso o PS pode publicitar algo que não faz parte da realidade de grande maioria dos trabalhadores por conta de outrem. Apesar de um aumento substancial do salário mínimo, talvez o maior aumento em apenas uma legislatura, ainda está longe de conseguir preencher as necessidades básicas de milhares de trabalhadores.

  Um aumento de salário que não se verificou apenas financeiramente, também o número de trabalhadores que beneficiam do mesmo sofreu um aumento significativo. Num pais com cada vez menos activos, o número de trabalhadores a receber o salário mínimo atinge os 20,4%. E se isso já era preocupante para a sustentabilidade da Segurança Social, mais preocupante é saber que outra grande fatia dos salários pagos no sector privado, também no público, não está longe dos valores do salário mínimo. Muitas empresas optam por aumentos muito tímidos, enquanto outras mantêm níveis salariais há margem do mínimo. Um dos exemplos é as empresas de distribuição onde os salários entre um trabalhador com 20 anos de antiguidade e um trabalhador com 20 dias pode ser apenas umas dezenas de euros de diferença. Enquanto os salários dos novos trabalhadores são actualizados conforme o salário mínimo, os antigos trabalhadores vivem de "compensações" tímidas que variam entre os 2,5€ e os 12€. Apesar de muitas saírem da orla do salário mínimo, não os deixa muito longe do mesmo.

Tal como os trabalhadores do sector da distribuição, muitos são os trabalhadores que cada vez mais vêm o seu salário equiparado ao salário mínimo, mesmo quando os anos de antiguidade já são longos e penalizadores.

 Um salário é baixo, e para uma grande fatia da população activa é incapaz de dar uma resposta às necessidades básicas, como por exemplo a habitação. O valor assombroso, chegando mesmo a ser pornográfico, das rendas em Lisboa e no Porto, que se vai alastrando para outras cidades, é um exemplo que a pasta da habitação não foi tratada devidamente. Não vale a pena tecer acusações ao anterior executivo quando este se imiscui de resolver este problema. É impossível uma família cujo agregado familiar tenha como base dois salários mínimos, se manter a residir numa casa em Lisboa, e até mesmo nos Concelhos limites. Se uma renda de um mero T2 em Benfica pode chegar aos 800€, um T3 em Odivelas chega mesmo aos 1300€ por mês.

  Se a renda é uma opção a não ter em conta, comprar casa então ainda se torna mais impossível. Em primeiro o valor especulativo imobiliário atinge números que são uma verdadeira mentira. Além dos bancos deixarem de parte a possibilidade de financiar os imóveis a 100%. Se para uns o 90% do valor já é demais, outros limitam-se a apenas 80% e uma série de requisitos como empregabilidade fixa. Num país onde a Legislação permite e contribui muito para a precariedade, e onde os salários pouco permitem uma taxa de esforço adequada ou uma taxa de poupança sorridente, comprar casa é algo completamente impossível para o comum cidadão trabalhador.

  E se falar da carga fiscal já é tema de conversa corriqueira, então falar do valor absurdo da mesma e dos serviços publicos completamente devastados é algo que já faz parte do dia-a-dia dos que vão para a fila de espera por um cartão de cidadão que o garrote do Governo obriga. O mesmo governo que confunde a depauperados serviços públicos que ele nos presenteia, com a culpa do cidadão ter de estar á espera desde as cinco da manhã para conseguir uma vaga, das poucas, para actualizar o seu cartão.

  Já para não falar na saúde, a quem Mário Centeno diz não fazer qualquer cativação, mas que teima em estar a entrar em colapso devido á falta de pessoal. Sim, faltam enfermeiros, médicos e auxiliares. Mas para Mário Centeno, doentes oncológicos que morrem á espera de exames, é uma situação pontual, a saúde está bem e recomendasse. Talvez para o Governo, como as filas para renovar o Cartão de cidadão são culpa dos utentes, talvez a culpa da saúde seja desta malta que teima em ficar doente, quando o país até está numa rota de crescimento exemplar.

  Á esquerda do Partido Socialista existe a expressão "se não fosse o BE (...)". Ainda na apresentação das listas pouco faltou para dizer que só não estamos a ter mais calor porque o BE tem travado fortemente a vaga. Já o PS "fomos nós que (...)". Mas estamos todos a contar os mesmos troços que contávamos no passado, mas com serviços públicos mais degradados e sem sorriso no futuro.

  Estamos na mesma, mas com Mário Centeno a fazer uma carreira brilhante para a Europa.





































segunda-feira, 1 de julho de 2019

O estado social é socialista, mas os países nórdicos não...


Já vi esta discussão (e esta contradição) tantas vezes....




Post também publicado no Esquerda Republicana